Leonardo
Sampaio
Escrevo estas traçadas linhas para dizer que como
educador popular na Rede de Educação Cidadã – RECID acumulei um
grande aprendizado nas diversas fazes que vivenciei de 2003 a 2009.
A Rede trazia na sua primeira fase a grande mobilização
em torno do Programa Fome Zero, com objetivo de implantar os
Conselhos Gestores em cada município, para que a sociedade pudesse
fazer o controle social do Programa. Naquele ano o Brasil não era
mais o mesmo, havia um grande entusiasmo da vitória de Lula, a
sociedade estava motivada e fortalecida pelo decreto do Governo
Federal que dava autonomia aos Conselhos de intervir diretamente
sobre as irregularidades que pudessem acontecer no âmbito do
Programa.
Surgia no país um novo contexto político de gestão
participativa e isso provocou um grande debate nacional sobre o que
fazer e como fazer controle social. Foi um momento em que a
sociedade, as academias e os gestores públicos em todos os
municípios do Brasil se mobilizaram em defesa do Programa Fome Zero.
No Ceará participei do primeiro grande encontro da sociedade civil
para discutir a formalização dos Conselhos. Em outro momento,
estava também em encontro com Frei Betto, mentor e Coordenador da
Rede que veio ao Ceará discutir a importância do envolvimento da
sociedade na execução do Programa.
A implantação dos Conselhos Gestores provocou reações
dos prefeitos conservadores, que se posicionaram contrários aos
Conselhos, argumentando a “intervenção da sociedade e do Governo
Federal na gestão pública municipal”. Com esse argumento
juntaram-se a Senadores e Deputados conservadores e marcharam rumo a
Brasília, exigindo a revogação do Decreto de criação dos
Conselhos Gestores. O Governo recuou e mudou o conteúdo, tornando-o
mais brando, ou seja, tirando a autonomia da sociedade e dando mais
poder aos gestores locais. Esse recuo desmotivou a participação da
sociedade e os Prefeitos passaram a executar aos seus modos.
Durante todo esse período, a Rede no Ceará esteve
muito presente nessa discussão, inclusive contraria ao recuo do
Governo.
Com esse grande desfecho conjuntural, a Rede desencadeia
nova estratégia político-pedagógica de realizar oficinas nos
municípios para discutir os conteúdos do Decreto e a forma de
participação da sociedade e dos gestores públicos a partir das
políticas públicas e não só compensatórias. Dessa forma a equipe
de educadores do Ceará se divide por regiões e passa a realizar
encontros e oficinas de formação sócio-político-pedagógicas para
capacitar lideranças e educadores capazes de realizarem novas
intervenções nos municípios, integrando gestão pública e
sociedade civil na perspectiva da elaboração de projetos e execução
das políticas púbicas de inclusão social, direcionados para os
beneficiários do Bolsa Família e àqueles que não foram
beneficiados, que encontram-se em situações até piores.
Durante esse processo, realizei várias oficinas em doze
municípios envolvendo Prefeitos, Secretários de Estado, Pastores,
Padres, Pastorais, Sindicatos, Associações, ONGs, lideranças
comunitárias, professores, educadores de alfabetização,
assentados. Assim fomos constituindo núcleos de educadores em cada
município com a finalidade de serem multiplicadores desse processo
de gestão participativa. Em alguns municípios havia dificuldade do
envolvimento do poder público local, mas as lideranças após
passarem por um processo de formação assumiam e seguiam seus
próprios caminhos, junto com a Rede de Educação Cidadã.
A terceira fase da Rede no Ceará foi trabalhar com os
educadores capacitados nos municípios e estes passaram a fazer
oficinas com os beneficiários da Bolsa Família em seus próprios
municípios, como forma de sensibilizá-los para o processo de
organização, capacitação e resgate cultural da vida no campo e na
cidade buscando assim, qualidade de vida, autoestima e produtividade
naquilo que conhecem e sabem fazer, seja na agricultura familiar, na
arte, cultura e até retornar aos estudos.
Estes foram os passos que trilhei no Ceará, por meio da
RECID, durante esta fase, onde fiquei responsável pela Região
Metropolitana, o lado leste e oeste do litoral e parte do sertão,
envolvendo 12 municípios (Fortaleza, Beberibe, Aracati, Barreiras,
Itaitinga, Trairí, Amontada, Itarema, Morrinhos, Meruoca, Milhã e
Quixeramumbim, no Sertão Central). Nessa fase a Rede preocupou-se em
fazer formação junto às lideranças dos municípios para que estes
fizessem o controle social, organizasse as famílias do Programa
Bolsa Família e pensassem com as prefeituras, políticas publicas de
geração de emprego e renda. Foi um período de grande crescimento
sócio-político, inclusive com a retomada das organizações
sociais.
Numa outra fase, me envolvi no debate nacional de
consolidação da Rede, participei de encontros de formação com
educadores de todo o país, da Região Nordeste e ajudei a organizar
estudo estadual e Microregionais no Ceará.
Com o processo de consolidação da RECID como
organização autosustentável nasce um novo debate sobre as
parcerias: quem é e em que nível é a parceria? Ou seja, quais as
entidades, ou organizações sociais que constituem a Rede enquanto
poder direto, de fato e de direito? No âmbito da Rede sempre foi uma
discussão interminável porque ela provoca outra via de debate que
envereda pelos altos e baixos da própria organização a nível
nacional, onde a Secretaria de Assessoria Especial do Governo com a
equipe do Talher controla a RECID nos Estados, o que transparece com
uma organização estatal, porém civil, porque envolve ONGs no
convênio, na gerência dos recursos e contratos dos educadores.
Dessa forma a Rede se torna cada vez menos autônoma, até porque os
convênios e contratos de educadores são temporários, portanto
geram insegurança e descontinuidade nas atividades. Estes fatores
também são motivo do afastamento de várias parcerias porque levam
a um desgaste nas suas bases devido à quebra de continuidade nos
trabalhos desenvolvidos nas oficinas. Estes são alguns dos desafios
que estão em debate na Rede quanto à consolidação. Um dos meios
para autonomia da Rede, apontados na última reunião que participei
na Coordenação Nordeste, seria transformar a RECID em entidade.
Nesse eixo, a forma de construir unidade seria o próprio PPP e PPB
para unificar uma linha de pensamento político e promoção de
grande debate nacional, com fortes desafios.
A elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico,
na perspectiva da construção de um Projeto Político para o Brasil
significou uma riqueza de aprendizado acumulado desde os primeiros
encontros nacionais, quando ficavam expostas as diferenças
regionais, com a tentativa de dominação, buscada muitas vezes no
grito, na manipulação ou conchaves. Os grandes encontros nacionais
foram mostrando que o caminho não seria esse, para se construir um
Brasil diferente com suas desigualdades regionais. Ali havia uma
aparência de que todos queriam igualdade política, econômica e
social, mas quando se tratava de regiões, as mais ricas queriam
sobrepor-se às mais pobres, numa visão de superioridade e
inferioridade no olhar econômico e de espécie. Quando o debate vem
para o campo dos conhecimentos, saberes e organização, percebe-se
que as aparências de fato enganam. Dessa forma o embate ideológico,
de raças, de etnias, de brasis perpassando por dentro da RECID,
possibilitou toda uma construção coletiva de novos parâmetros para
uma convivência harmônica no pensamento de nação.
Para chegar até aí, foi necessário beber na fonte da
linguagem de Paulo Freire, Florestan Fernandes, Caio Prado, Darcy
Ribeiro, Antônio Gramsci, Marilena Chauí, Karl Marx e outros. No
entanto, com todas essas teorias sem o exercício prático de troca
de experiências vividas na RECID, seria impossível compreender a
dimensão da educação popular que está em curso neste país, lá
na base, nas “quebradas”, “nos cafundó”, “nas bibocas”,
nas favelas, nas áreas de risco, bairros periféricos, assentamentos
resgatando vidas e promovendo cidadania.
Foi aí onde dediquei dias de minha vida, trabalhando na
Rede de Educação Cidadã no Ceará, realizando oficinas nas
comunidades dos pequenos municípios e em Fortaleza nas favelas da
Fumaça e Entrada da Lua no Bairro Pici, fortalecendo as organizações
comunitárias locais com formação e capacitação para as
lideranças qualificando com mais eficácia suas intervenções nas
políticas públicas entre estado e comunidade.
Esse trabalho da RECID, somado à experiência de 29
anos da AMORA (Associação de Organizadores Sociais e Serviço) e do
ESCUTA (Espaço Cultural Frei Tito de Alencar), fortaleceu a
penetração da comunidade nas políticas públicas governamentais a
nível federal, estadual e municipal, proporcionando qualidade de
vida e até a tomada de poder em determinados municípios.
Nessa empreitada de organizar o pensamento crítico
sobre o papel do Estado e os direitos dos cidadãos e cidadãs a
RECID deu uma grande contribuição no Pici, em Fortaleza
proporcionando às pessoas passarem a buscar mais o engajamento nas
capacitações que o próprio estado oferece dentro das políticas
públicas. Ao passo que as pessoas iam participando, ou nos contados
surgiam suas carências, novas parcerias ia-se buscar e os serviços
foram se concretizando, como: oficinas sobre sexualidade para jovens
e adultos, segurança, infraestrutura urbana, políticas de idosos,
segurança alimentar. Nestas oficinas e na busca de direitos, foram
percebendo a importância da participação e aí entraram nos
Conselhos Gestores de saúde e educação, de políticas para
juventude, cultura. Ao entrarem nas discussões encontraram outros
campos de atuação que são as Conferências de Saúde, Educação,
Saúde Ambiental, Segurança, Comunicação. Os idosos descobriram
também que nas políticas de saúde, podiam voltar a mastigar com
dentes e sorrirem aí foram buscar dentaduras na Universidade Federal
do Ceará. Meu Deus! Precisa ver quanta alegria! Algumas nem saiam
mais de casa, chegavam a me dizer: “Tenho vergonha de sair sem
tente, estou tão feia assim”! Agora cantam, contam historias,
dançam, paqueram e as relações em família mudaram radicalmente
com autoestima elevada.
As entidades entram nas políticas públicas através de
editais e outra parcerias nas áreas específicas às quais atuam,
com princípios e missões humanamente solidários e compromissados
com a transformação da cruel realidade.
A juventude do Pici recebeu formação como arte
educador, voltaram a estudar e entrarem nas Faculdades por meio do
Prouni e de vestibular nas Universidades Públicas. Muitos destes
estão empregados na própria Prefeitura e participando na
comunidade. Trabalhar com a juventude foi uma forma que encontramos,
para que os trabalhos não sofram descontinuidade, principalmente
qualificando-os como técnicos da área acadêmica, sendo eles da
própria comunidade e que darão seqüência planejando as ações de
acordo com suas próprias necessidades.
Assim, com a RECID pude dar minha colaboração como
Educador Contratado e em outras horas como voluntário por acreditar
ser esse o caminho da construção de uma sociedade justa e solidária
capaz de promover a redenção do Ser humano e do universo.
Fortaleza,
29/08/2009
COMENTÁRIOS:
Experiência
Educador RECID
Domingo,
30 de Agosto de 2009
De:
"Maria
Inez de Lima Almeida"
Para:
"Leonardo
Furtado Sampaio"
Na primeira pagina
seu texto passa a emoção de nos sentir assistindo a implantação
de um projeto que parece metamorfoseado, vemos a ação do governo e
ao mesmo tempo a presença em movimento acelerado dos educadores
potencializando pessoas e lugares. Parece um assumir de compromisso
com propriedade. Há uma presença política nas estratégias
sistemáticas que dá visibilidade e comprova esse movimento que é
vital, parece que corre sangue vivo.
Para quem está
entrando ou vai entrar nessa rede esse documento é instrumento
esclarecedor dos marcos relevantes do processo.
É visível os
desafios constantes percebidos nos entre meios das discussões dos
educadores.
É
evidente os conflitos locais entre educadores e regiões. O parágrafo
onde aparece essa expressão; “Os
grandes encontros nacionais foram mostrando que o caminho não seria
esse, para se construir um Brasil diferente com suas desigualdades
regionais.”
É rico e retém em si uma profundidade a ser refletida que aponta
para a construção de uma metodologia especifica e em construção,
não copiada.
Penso que esse texto
pode ser indicado para estudo sobre os passos da Recid no Ceará.
È um grande
aprendizado em uma grande caminhada.
A sistematização
do ceará já ganhou com esse texto.
Um abraço
Inez