"Há quem morra chorando pelos pobres. Eu morrerei denunciando a pobreza"
Bernard Shaw
O nordeste brasileiro é marcado por uma tradição coronelista e religiosa onde o poder político, econômico e patriarcal fica concentrado nas mãos dos proprietários de terra, donos de engenhos, usineiros e comerciantes.
Esse contexto gera desigualdade social quando as populações descendentes de indígenas e negros tornam-se trabalhadores agregados, ou seja, famílias que passam a morar nas terras dos proprietários tendo apenas o direito de vender sua mão de obra pelo custo que os proprietários determinam. (A miséria em que muitos vivem sempre correu em paralelo a riqueza exuberante de alguns outros – Marcus Eduardo de Oliveira).
A estas populações, os direitos básicos da pessoa humana são negados até mesmo pelo estado, como: saúde, educação e terra para plantar. São pessoas determinadas pelo poder para serem apenas trabalhadores braçais e reprodutores de mão-de-obra. (Historicamente, a elite dominante, tanto aqui, quanto acolá, sempre ditou regras em benefício próprio, mesmo que isso significasse tirar a vida de muitos – Marcus Eduardo de Oliveira).
Enquanto isso, as classes dominantes preparam os filhos para exercerem a gerencia de seus patrimônios e o poder político local e as filhas para serem catequistas, professoras, donas de casa, boas esposas e reprodutoras de herdeiros.
A criação e a formação de crianças, adolescentes e jovens se dão dentro destas contradições de classe, em que a própria educação chega apenas às crianças da classe dominante por meio de escolas particulares ou de congregações religiosas. Os pobres ficam analfabetos e cada vez mais dominados e ao passo que as tecnologias chegam ao campo, estas pessoas vão se tornando inúteis e são dispensadas das terras como agregados. Dessa forma vão sendo marginalizadas do processo sócio, econômico, político, cultural, religioso e assim vão formando vilarejos como espaço para morar. O interessante nesse contraditório é que vão sentindo-se pessoas livres, por terem seu próprio espaço para morar, ou seja, agora também são proprietários do que é seu e até optam pelo patrão que melhor lhe agrada. Para alguns parece até carta de alforria, no entanto lhes falta a consciência cidadã enquanto sujeito histórico coletivo e agem apenas como indivíduos nos moldes do Ser capaz, sozinho que é o elemento fundamental do sistema capitalista absolvido dentro da contradição de classe. (Nem sempre os gemidos do povo são gemidos do Espírito, porque eles possuem idéias muitas vezes impostas pelo poder – Moisés temendo a reação do povo ao ser enviado à terra prometida – Ex. 3, 7-2 ).
A religião entra aí como instrumento amortecedor da luta de classe, já que todos diante de Deus são iguais, filhos do mesmo pai e da mesma mãe e aqueles que acreditarem nele serão acolhido no céu sem distinção de classe. Ora, essa pregação é feita pelos religiosos e religiosas filhos e filhas dos abastados da terra, por serem os únicos a terem acesso a leitura e assim construírem deuses de acordo com seus interesses. Logo, apresentam um deus santo, piedoso e verdadeiro, porém um tanto carrasco, que castiga e condena, que mata em nome do bem. São deuses cheios de dogmas e temeroso.
São estes deuses que chegaram a Abaiara no século XIX catequizando e doutrinando o povo sobre a ótica da verdade, da moral e de uma Igreja acima do bem e do mal representada por uma hierarquia sacerdotal consagrada na Europa e que impõe sacramentos religiosos em detrimento de outras culturas, de outros povos de continentes com praticas e costumes adversos aos interesses econômicos e religiosos. (Usando a cruz como símbolo a colonização sob a tutela da elite européia, promoveu, por exemplo, o genocídio de milhares de indígenas nas Américas - somente no México foram 35 milhões de mortes, segundo as estimativas mais "otimistas". Ainda debaixo do nariz da Igreja Católica, sob sua cumplicidade, em conluio com a aristocracia rural brasileira, quase 5 milhões de negros foram trazidos da África ao Brasil como escravos e tratados aqui como animais de carga – Marcus Eduardo de Oliveira).
Já o século XX proporciona novos paradigmas de discussão sobre Deus e seu filho Jesus Cristo, quando Karl Marx diz que: “A religião é ópio do povo” e a desigualdade social é resultado da exploração do homem pelo homem.
Esse discurso leva à vitória da revolução Russa em 1917, a burguesia é expulsa do poder, seu patrimônio passa a ser estatal e é implantada uma nova ordem sócio-político-economico-cultural que repercute em todo mundo. Agora quem irá governar será o povo organizado(souviets). A Igreja católica como aliada da classe dominante é alijada do poder e é construído um novo paradigma de negação religiosa, é implantado um estado ateu e comunista que traz os princípios Marxistas com um modelo econômico voltado para o bem estar da humanidade em uma sociedade igualitária.
O projeto marxista até se aproxima da vida dos primeiros cristãos (Todos os que creram continuavam juntos e unidos e repartiam uns com o outro o que tinham - Atos 2, 44-47). Porém, a Igreja afastou-se destes princípios da construção do reino de Deus baseado na igualdade, na justiça, na fraternidade, na liberdade. Ora, uma Igreja que perde essa intencionalidade humanitária e política pregada por Jesus Cristo (Jesus entrou no Templo e começou a expulsar os que vendiam e os que compravam no Templo. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores. Não está nas escrituras: Minha casa será chamada de casa de orações para todos os povos? No entanto vocês fizeram dela uma toca de ladrões – Marcos 11, 15-19), ao se deparar com a possibilidade da retomada de uma consciência de classe, pregado agora pelo estado e que esse estado, nega a existência de um deus que acalenta os pobres a conformar-se com o estado de abandono e aceite a caridade como benção divina do pai, essa igreja logo reage ao perigo destes ideais espalhar-se pelo mundo e na humanidade.
O efeito dessa política causa grande medo a Igreja Católica em todo o mundo e repercute no Brasil por ser um país católico e dependente economicamente do imperialismo americano e europeu com um povo pobre e desprotegido do estado, sem acesso as políticas públicas. Como o comunismo busca a libertação dos pobres do ponto de vista humano, com distribuição das riquezas e das terras de imediato o poder político e econômico reage com precauções contra o comunismo e busca as Igrejas católica e evangélicas para ampliar as Congregações religiosas no país, principalmente na área educativa, catequética e missionária penetrando em todo o nordeste com uma pregação de salvação da alma em detrimento do corpo. "Se foi no corpo ou fora do corpo, não sei, Deus é quem sabe." (Segunda carta aos Coríntios 12,2). “Ser pobre é porque Deus quer”. “Sem o rico o pobre não vive”. “O que seria do pobre se não fosse o rico”? “Tenho que me conformar com a pobreza porque é vontade de Deus”, “Seja o que Deus quiser”. Essa é a linguagem da Igreja Católica a partir do período feudal, pregando o medo ao satanás (cuidado que o cão tá solto), o castigo de Deus (te comporta se não Deus castiga), a obediência ao estado e a acomodação pra proteger os proprietários de terra em nome de Deus. Essa é a Igreja, que na época da colonização no Brasil dizia que índio não tem alma e que na escravidão afirmava que negro também não tem alma, dessa forma os proprietários podia tratá-los como animais. Olha só a contradição dessa Igreja com o ensinamento Bíblico, no tempo da escravidão no Egito, quando o povo buscava a terra prometida. “Eu vos darei uma terra fértil onde corre leite e mel – CF. Ex. 3,8”.
Enquanto isso, o comunismo faz outro discurso, afirmando que a pobreza é resultado da exploração do trabalhador e da acumulação de terra e dinheiro nas mãos de poucos e não vontade de Deus. (Vão construir casas e vão morar nelas. Vão fazer as plantações e vão comer os seus frutos. Não vão mais construir para os outros aproveitarem. Não vão mais plantar para outros passarem bem. Os filhos de meu povo durarão tanto quanto às arvores e o meu povo aproveitará do trabalho de suas mãos – Isaias 65, 17-23). Que o modo de produção capitalista não trás a relação do homem com a natureza. Que a história da humanidade é a história da luta de classe. Que as estrutura de opressão é a raiz da desigualdade (Paulo Freire). (Efraim disse: “Em verdade, tornei-me rico e amontoei fortunas”. Mas Oséias diz: “Todos os seus ganhos não podem compensar os pecados que cometeu”). Como forma de se contrapor a esse discurso a Igreja dos filhos de ricos de congregações européias começa a realizar grandes missões pelos sertões a fora pregando contra o comunismo. “Comunismo é coisa do cão”. “Os comunista pegam as crianças e mata”. “Não sai de casa que os comunistas ti pegam”. “Comunista é a besta fera”. Os pais falavam assim para as crianças não saírem nas ruas ou nas estradas sozinhas. ("os problemas de nosso tempo com as preocupações mais humanas de Marx, aprofundando um e outro e oferecendo subsídios ao debate da maioria contra o reino da minoria". Luci Farias Pinheiro. III Fórum Mundial de Teologia e Libertação.)
Enquanto a Igreja vendia terror, pobres e patrões estavam nas celebrações rezando na mesma cartilha da “salvação”.
Comunidades Eclesiais de Base - CEBs
A Igreja Católica na década de 60 passou por uma reforma com o anuncio de um novo Concilio em que a Igreja, valorizou o papel dos leigos e abriu-se para os problemas da sociedade dando-lhes voz e vez. Assim, as comunidades cristãs incentivadas pelo Concilio Vaticano II (1962 – 1965) e com a realização do encontro da Conferencia Episcopal da America Latina - CELAM em Medellin (Colômbia) (1968) (Para Medellín, a forma mais adequada de se fazer uma real vivência da fraternidade cristã é no seio de comunidades de base. Trata-se de comunidades "de apóstolos em seu próprio ambiente" (Med 7,4), comunidades pequenas, de tamanho humano, que permitem a ministerialidade e a corresponsabilidade de todos. "No seio do Povo de Deus, há unidade de missão" (Med 10,7), em que as CEBs são "o primeiro e fundamental núcleo eclesial, a célula inicial de estruturação eclesial, foco de evangelização e fator primordial de promoção humana e desenvolvimento", o "rosto de uma Igreja pobre" (Med 15,10). A missão é para a comunhão em pequenas comunidades de fiéis, em vista da fraternidade entre todos os seres humanos.) e Puebla (1979) onde houve a confirmação das CEBs e que a Igreja da America Latina, a partir da Teologia da Libertação (A teologia e os movimentos sociais se complementam, mantendo uma autonomia, cujas articulações se dão mais no campo das afinidades éticas e políticas, em que o religioso ajuda a firmar convicções e jamais a apontar os caminhos. Luci Faria Pinheiro, da Universidade Federal Fluminense (UFF) assistente social) faz opção preferencial pelos pobres e as CEBs se espalharam principalmente nos anos 1970 e 80 no Brasil e na América Latina. As CEBs consistem em comunidades reunidas geralmente em função da proximidade territorial, composta principalmente por membros das classes populares vinculadas a uma Igreja, cujo objetivo é leitura bíblica em articulação com a vida. Através do método ver-julgar-agir buscam olhar a realidade em que vivem (VER), julgá-las com o olhar da fé (JULGAR) e encontrar caminhos de ação impulsionados por esse mesmo juízo à luz da fé (AGIR). As CEBs, são uma nova forma de organizar a pastoral. (Frei Betto).
Logo após o encontro de Puebla (México) 1979, onde a CEBs recebe quase que um batismo e o Papa João Paulo II em visita ao Brasil entrega aos bispos uma mensagem para os animadores de CEBs, reafirmando sua confiança e esperança nessa caminhada. Foi a partir daí que religiosos, religiosas e leigos se entusiasmam e começam a criar nas Favelas de Fortaleza, as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, inicialmente nas Comunidades da Veneza (Genibaú) e Lagamar (1979) e na Fumaça (1980). As reflexões partem da compreensão de uma Igreja profética (Profeta é alguém que olha o mundo e seus acontecimentos na perspectiva de Deus e daí a sua sensibilidade diante do mal, da injustiça, da crueldade do homem – Cf. p.e Amós 6, 3-6) que anuncia a palavra de Deus e denuncia as injustiças construindo assim, um novo jeito de ser Igreja no meio dos pobres. As CEBs são comunidades ligadas principalmente a Igreja Católica incentivadas pelo Concilio Vaticano II.
Em 1983 a Irmã Luzia Goes e o Seminarista Luciano Furtado que haviam iniciado a experiência das CEBs em 79, tiveram a idéia de iniciar uma Comunidade Eclesial de Base em Abaiara e partiram mais precisamente para a Vila São José (Lages). O público era formado de trabalhadores da roça e donas de casa, alguns com caminhada no Sindicato dos Trabalhadores Rurais – STR. As reuniões aconteciam uma vez por mês, com leitura bíblica (Todos os que abraçam a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas - At.2,44) reflexões e cânticos que revelam a situação dos trabalhadores do campo (Sem casa, sem terra/ sem ter o que comer/ sem emprego meu irmão/ que haveremos de fazer).
Abaiara fica no Estado do Ceará na Região do Cariri a 540 km de Fortaleza e a Diocese é centralizada na Cidade do Crato com uma Igreja extremamente conservadora, adversa a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base, por estas, refletirem à luz da fé e da palavra de Deus as desigualdades sociais como resultado do sistema capitalista sendo esse considerado na Teologia da Libertação um modelo pecaminoso.
Sempre após a leitura bíblica era feito a pergunta sobre o que a leitura tinha a ver com a vida vivida por cada um presente, a partir de um olhar de um Cristo Libertador e um Deus que ama e que criou o céu a terra e todos os bens da natureza para que seus filhos vivam com dignidade, obtendo o uso fruto de tudo que lhes foi dado pelo pai. (Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundancia – Jo 10,10).
Com esse olhar critico as pessoas iam despertando para sua realidade e percebendo que o povo de Deus, de Abraão, de Moises não era diferente da realidade em que viviam e o que buscavam era a liberdade, isso também poderia ser encontrada em Abaiara, bastando pra isso compreender a mensagem do Cristo Libertador e buscar por em prática a palavra de Deus na vida real, terrestre onde o bem estar é direito de todos os habitantes da terra.
A reflexão bíblica traz para a roda de conversa, a necessidade da renuncia, da conversão do espírito de igualdade, da fraternidade, do amor a vida e o rompimento com o egoísmo, a ganância, o poder, o acumulo de bens em detrimento da pobreza, da miséria e da fome. Tudo isso passa a ser entendido não mais como vontade de Deus, mas como os pecados dos homens que desvirtuaram os caminhos da libertação de homens e mulheres na visão de um Ser completo.
Quando essa forma de leitura do mundo a partir da fé, começa a ganhar espaços entre os trabalhadores, os proprietários de terra e políticos locais se preocuparam e procuram a Igreja hierárquica diocesana para impedir a continuidade das reuniões em nome da Igreja, o que foram prontamente atendidos. Eles não contavam era que eu como leigo, a hierarquia não podia impedir e assim continuei a reunir com os trabalhadores e trabalhadoras, que eram vistas como pessoas rudes, sem saber e sem compreensão das coisas e nós estávamos botando revolta na cabeça delas contra os patrões. Na verdade são pessoas que para as elites elas não podem pensar, a sua função é apenas o trabalho braçal para servi-las ao custo da piedade, da migalha, do favor político e do estado. (É da periferia que nasce a Teologia da Libertação, e não do centro. Michael Löwy - Cientista social brasileiro).
Essa reação das elites locais levou a comunidade, a partir da fé, utilizar a palavra bíblica e aprofundar as questões políticas, formas de poder, sistema econômico, instrumentos de dominação, de controle da sociedade, a questão cultural, direitos da pessoa humana, deveres do estado e formas de organização do povo para buscar a libertação.
O país vivia a ditadura militar, governado por generais sob tortura, prisões, exílio e assassinatos de lideranças, no campo e na cidade. Não havia eleição para presidente da republica, governos dos estados e prefeituras das capitais e um senador todos eram indicados pelos generais. O Estado do Ceará era governado por uma seguência de coronéis, que dominavam toda política em consonância com os militares, empresários, fazendeiros, banqueiros concentrando riquezas e gerando cada vez miséria.
O poder político e econômico de Abaiara não era diferente dessa realidade. A pobreza começava a construir favelas e morar em condições subumanas, a emigração era crescente, famílias com raízes culturais e históricas tinham que abandonar tudo em busca da terra prometida.
Essa realidade era o que definia a pauta das reuniões e da leitura bíblica levando a uma análise que despertava um olhar de outro jeito de ser Igreja e fazer política, as pessoas que participavam das reuniões começavam a ficarem sabias do ponto de vista de uma consciência críticas e aí as conversas com os patrões eram diferenciadas, falavam de direitos. Isso incomodou os poderes econômicos e políticos o que fez com que o Prefeito fosse até minha casa em Fortaleza, para dizer que eu não fosse mais a Abaiara reunir com aquelas pessoas, por eu estar fazendo com que as pessoas ficassem revoltadas contra eles. Passei a ser “pessona nom grata” para as elites municipais. Respondi ao Sr. Prefeito que só deixava de ir a Abaiara se fosse decisão dos trabalhadores. (Eu vou lhe mostrar a minha fé por meio das minhas ações – Tiago 1.1-18.)
Assim fiz, fui até Abaiara reunir com a comunidade para tratar sobre o assunto de não ir mais lá. A situação foi cruel, os donos de terras reuniram e decidiram não dar mais roça para os trabalhadores plantar se continuassem participando das reuniões. Dessa forma não tinha o que fazer a não ser deixar de reunir na comunidade. (Nas CEBs, praticamos o amor solidário ao povo sofredor. Lutamos por melhores condições de vida e fazemos a política do bem comum).
Mesmo com essa repressão houve o despertar das pessoas e o resultado é que surgiu outro efeito que foi levar os trabalhadores a se engajarem mais nos sindicatos e passarem até a serem dirigentes. (Se eu me calar as pedras falaram).
Leonardo Sampaio
Educador Popular