sexta-feira, 8 de março de 2013

Carta para um vaqueiro no céu



Companheiro Dudé
Eu nunca te esqueci, estou agora conversando com teu filho Dico, que conheci, como vaqueiro, curraleiro, carreiro e sempre fomos grandes amigos. Estávamos recordando de muitas coisas boas vividas na minha infância e adolescência. Escrevemos o nome de todos os acessórios que um vaqueiro usa, desde seus pertences, aos arreios do animal. Tudo era feito de forma artesanal por mãos de artistas profissionais como você conhecia muito bem. Cada um caprichava pra fazer bonito e seguro.
Sempre quando rezo lembro de você, espero que esteja ao lado de tua família, junto ao pai, o nosso Deus. Hoje tive vontade de conversar contigo e esse foi o jeito que encontrei, escrever pra lembrar nosso tempo e te contar como estão às coisas aqui na terra.
Eu continuo na luta junto com tantos outros companheiros por este Brasil a fora. Sempre na batalha contra o capitalismo e em busca da construção do reino de Deus. O reino que começa aqui na terra. Procuramos seguir na fé, o que Jesus nos ensinou. Entendemos que ele pede de nós que procurar levar aos mais humildes, esperança, amor, paz e justiça com liberdade integral do ser humano em comunhão com a natureza.
Mas companheiro, a coisa não está fácil, anda tudo ao contrário do que Deus quer, os dez mandamentos parece que apagaram e seus ensinamentos são ignorados por esse sistema cruel, desumano.
Mais antes de entrar nesse papo da atualidade, quero lembrar um pouco o seu tempo, depois eu conto como esta a situação agora.
Tu deves se lembrar da fartura de comidas existentes em nossa época nos sertões do Cariri, lá tinha: mungunzá, feijão com pão, toicinho, mocotó, angu com leite, capão gordo, queijo, carne assada, leite, paiol de milho, macaxeira, batata, jerimum, arroz, rapadura, farinha, baião de dois, cuscuz, peba com arroz e angu, tatu cozido e tantas outras delicias.
Companheiro, com o Dico a gente ia lembrando do gado solto no campo, cavalos de cela, cavalos de campo, burros de cela e de campo, da cangaia e os cambitos e do lote de éguas com jumento.
Lembras dos arreios dos animais, uniformes do vaqueiro e acessório?
Vamos anotar para as outras gerações tomar conhecimento dessa nossa história. Olha só o que havia nos arreios de um animal: Esteira, soador, talabardão, ação, cela, cia, rabicho, estribo, lóro, capa, guardapa, peitoral, cabresto e cabeçada.
O terno do vaqueiro era feito de couro de bode e as peças eram: perneira, gibão, guarda-peito, luvas, chapéu e mais os acessórios: sapato de couro, chicote, espora, alforjes, caretas e chocalhos. Esses acessórios iam amarrados por correias que já faziam parte da cela, além disso na lua da cela que era móvel, por baixo era colocado a corda de laçar boi, que era feita de couro cru com uma argola de metal num laço.
Lembro de você saído de baixo do pé de juá com todo esse equipamento pra campeã e ainda botava no alforje farinha, queijo, carne assada, rapadura e na garupa do cavalo a maca, feita de couro de carneiro com lã, (na maca ia roupas e rede) e ao lado ia o Trigueiro, o cachorro amigo que lhes acompanhava.
Dudé, você era admirado por todos, porque gostavas da vida, de zelar a sua família, de suas coisas e de tratar bem os animais, de aparar o rabo, cortar as clinas, limpar as orelhas, banhar, aparar os cascos, apear e soltar na roça.
Sempre fostes assim, vaidoso, cuidadoso e simples.
Quando chegava a invernada que a ramagem enfolhava na caatinga, juntavam-se as vacas, novilhas escoteiras e junto com um touro, fazia-se a solta na mata. Toda semana ias lá olhar o gado, observar as fêmeas morjadas, ou com bicheiras e até trazer bezerro na lua da cela quando a vaca paria no mato. Se houvesse algum animal ferido, partias para a pega, a derrubada do boi na mata fechada, para poder tratá-lo.
Na ocasião da pega os recursos medicinais eram veneno, criolina, leite-de-algudão-seda, bosta verde de gado ou péia de fumo.
Passado o inverno, a ramagem se acaba e vem o momento do gado voltar para a fazenda, é aí que o Vaqueiro começa a arrebanhar a boiada, só que ela já está acostumada com a matam onde ela tem liberdade e alguns se rebelam, fogem do rebanho, daí começa então à busca, é a vez dos Vaqueiros, os cavalos e o boi sair no pega pra capá ( castrar ). Era esse o momento em que todos os vaqueiros se juntavam e partiam de mata a dentro, é também a vez do Trigueiro mostrar seu valor. Só vai nessa empreitada quem tem coragem, é aí, onde a mata se abre e fecha, com a passagem do boi, do vaqueiro e o cavalo, não esquecendo o latido do amigo Trigueiro que chega junto na hora da derrubada do boi. Logo que o boi é dominado, os vaqueiros colocam a careta, o chocalho e voltam procurando o rastro por onde passaram para encontrar novamente a boiada.
O grande trunfo do Vaqueiro nessa empreitada é chegar primeiro, é pegar no rabo do boi em plena mata e derrubar, é misturar o suor, o sangue, o cansaço, a sede, é elogiar o cavalo que chegou junto, é serem vitoriosos e sorrirem juntos.

Esse texto foi feito com ajuda de Dico, filho de seu Dudé, onde íamos lembrando o nome dos acessórios.

Leonardo Furtado Sampaio

12 / 05 / 2002

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