TEXTOS e POESIAS

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Carta sobre experiências na Rede de Educação Cidadã

Leonardo Sampaio

Escrevo estas traçadas linhas para dizer que como educador popular na Rede de Educação Cidadã – RECID acumulei um grande aprendizado nas diversas fazes que vivenciei de 2003 a 2009.
A Rede trazia na sua primeira fase a grande mobilização em torno do Programa Fome Zero, com objetivo de implantar os Conselhos Gestores em cada município, para que a sociedade pudesse fazer o controle social do Programa. Naquele ano o Brasil não era mais o mesmo, havia um grande entusiasmo da vitória de Lula, a sociedade estava motivada e fortalecida pelo decreto do Governo Federal que dava autonomia aos Conselhos de intervir diretamente sobre as irregularidades que pudessem acontecer no âmbito do Programa.
Surgia no país um novo contexto político de gestão participativa e isso provocou um grande debate nacional sobre o que fazer e como fazer controle social. Foi um momento em que a sociedade, as academias e os gestores públicos em todos os municípios do Brasil se mobilizaram em defesa do Programa Fome Zero. No Ceará participei do primeiro grande encontro da sociedade civil para discutir a formalização dos Conselhos. Em outro momento, estava também em encontro com Frei Betto, mentor e Coordenador da Rede que veio ao Ceará discutir a importância do envolvimento da sociedade na execução do Programa.
A implantação dos Conselhos Gestores provocou reações dos prefeitos conservadores, que se posicionaram contrários aos Conselhos, argumentando a “intervenção da sociedade e do Governo Federal na gestão pública municipal”. Com esse argumento juntaram-se a Senadores e Deputados conservadores e marcharam rumo a Brasília, exigindo a revogação do Decreto de criação dos Conselhos Gestores. O Governo recuou e mudou o conteúdo, tornando-o mais brando, ou seja, tirando a autonomia da sociedade e dando mais poder aos gestores locais. Esse recuo desmotivou a participação da sociedade e os Prefeitos passaram a executar aos seus modos.
Durante todo esse período, a Rede no Ceará esteve muito presente nessa discussão, inclusive contraria ao recuo do Governo.
Com esse grande desfecho conjuntural, a Rede desencadeia nova estratégia político-pedagógica de realizar oficinas nos municípios para discutir os conteúdos do Decreto e a forma de participação da sociedade e dos gestores públicos a partir das políticas públicas e não só compensatórias. Dessa forma a equipe de educadores do Ceará se divide por regiões e passa a realizar encontros e oficinas de formação sócio-político-pedagógicas para capacitar lideranças e educadores capazes de realizarem novas intervenções nos municípios, integrando gestão pública e sociedade civil na perspectiva da elaboração de projetos e execução das políticas púbicas de inclusão social, direcionados para os beneficiários do Bolsa Família e àqueles que não foram beneficiados, que encontram-se em situações até piores.
Durante esse processo, realizei várias oficinas em doze municípios envolvendo Prefeitos, Secretários de Estado, Pastores, Padres, Pastorais, Sindicatos, Associações, ONGs, lideranças comunitárias, professores, educadores de alfabetização, assentados. Assim fomos constituindo núcleos de educadores em cada município com a finalidade de serem multiplicadores desse processo de gestão participativa. Em alguns municípios havia dificuldade do envolvimento do poder público local, mas as lideranças após passarem por um processo de formação assumiam e seguiam seus próprios caminhos, junto com a Rede de Educação Cidadã.
A terceira fase da Rede no Ceará foi trabalhar com os educadores capacitados nos municípios e estes passaram a fazer oficinas com os beneficiários da Bolsa Família em seus próprios municípios, como forma de sensibilizá-los para o processo de organização, capacitação e resgate cultural da vida no campo e na cidade buscando assim, qualidade de vida, autoestima e produtividade naquilo que conhecem e sabem fazer, seja na agricultura familiar, na arte, cultura e até retornar aos estudos.
Estes foram os passos que trilhei no Ceará, por meio da RECID, durante esta fase, onde fiquei responsável pela Região Metropolitana, o lado leste e oeste do litoral e parte do sertão, envolvendo 12 municípios (Fortaleza, Beberibe, Aracati, Barreiras, Itaitinga, Trairí, Amontada, Itarema, Morrinhos, Meruoca, Milhã e Quixeramumbim, no Sertão Central). Nessa fase a Rede preocupou-se em fazer formação junto às lideranças dos municípios para que estes fizessem o controle social, organizasse as famílias do Programa Bolsa Família e pensassem com as prefeituras, políticas publicas de geração de emprego e renda. Foi um período de grande crescimento sócio-político, inclusive com a retomada das organizações sociais.
Numa outra fase, me envolvi no debate nacional de consolidação da Rede, participei de encontros de formação com educadores de todo o país, da Região Nordeste e ajudei a organizar estudo estadual e Microregionais no Ceará.
Com o processo de consolidação da RECID como organização autosustentável nasce um novo debate sobre as parcerias: quem é e em que nível é a parceria? Ou seja, quais as entidades, ou organizações sociais que constituem a Rede enquanto poder direto, de fato e de direito? No âmbito da Rede sempre foi uma discussão interminável porque ela provoca outra via de debate que envereda pelos altos e baixos da própria organização a nível nacional, onde a Secretaria de Assessoria Especial do Governo com a equipe do Talher controla a RECID nos Estados, o que transparece com uma organização estatal, porém civil, porque envolve ONGs no convênio, na gerência dos recursos e contratos dos educadores. Dessa forma a Rede se torna cada vez menos autônoma, até porque os convênios e contratos de educadores são temporários, portanto geram insegurança e descontinuidade nas atividades. Estes fatores também são motivo do afastamento de várias parcerias porque levam a um desgaste nas suas bases devido à quebra de continuidade nos trabalhos desenvolvidos nas oficinas. Estes são alguns dos desafios que estão em debate na Rede quanto à consolidação. Um dos meios para autonomia da Rede, apontados na última reunião que participei na Coordenação Nordeste, seria transformar a RECID em entidade. Nesse eixo, a forma de construir unidade seria o próprio PPP e PPB para unificar uma linha de pensamento político e promoção de grande debate nacional, com fortes desafios.
A elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico, na perspectiva da construção de um Projeto Político para o Brasil significou uma riqueza de aprendizado acumulado desde os primeiros encontros nacionais, quando ficavam expostas as diferenças regionais, com a tentativa de dominação, buscada muitas vezes no grito, na manipulação ou conchaves. Os grandes encontros nacionais foram mostrando que o caminho não seria esse, para se construir um Brasil diferente com suas desigualdades regionais. Ali havia uma aparência de que todos queriam igualdade política, econômica e social, mas quando se tratava de regiões, as mais ricas queriam sobrepor-se às mais pobres, numa visão de superioridade e inferioridade no olhar econômico e de espécie. Quando o debate vem para o campo dos conhecimentos, saberes e organização, percebe-se que as aparências de fato enganam. Dessa forma o embate ideológico, de raças, de etnias, de brasis perpassando por dentro da RECID, possibilitou toda uma construção coletiva de novos parâmetros para uma convivência harmônica no pensamento de nação.
Para chegar até aí, foi necessário beber na fonte da linguagem de Paulo Freire, Florestan Fernandes, Caio Prado, Darcy Ribeiro, Antônio Gramsci, Marilena Chauí, Karl Marx e outros. No entanto, com todas essas teorias sem o exercício prático de troca de experiências vividas na RECID, seria impossível compreender a dimensão da educação popular que está em curso neste país, lá na base, nas “quebradas”, “nos cafundó”, “nas bibocas”, nas favelas, nas áreas de risco, bairros periféricos, assentamentos resgatando vidas e promovendo cidadania.
Foi aí onde dediquei dias de minha vida, trabalhando na Rede de Educação Cidadã no Ceará, realizando oficinas nas comunidades dos pequenos municípios e em Fortaleza nas favelas da Fumaça e Entrada da Lua no Bairro Pici, fortalecendo as organizações comunitárias locais com formação e capacitação para as lideranças qualificando com mais eficácia suas intervenções nas políticas públicas entre estado e comunidade.
Esse trabalho da RECID, somado à experiência de 29 anos da AMORA (Associação de Organizadores Sociais e Serviço) e do ESCUTA (Espaço Cultural Frei Tito de Alencar), fortaleceu a penetração da comunidade nas políticas públicas governamentais a nível federal, estadual e municipal, proporcionando qualidade de vida e até a tomada de poder em determinados municípios.
Nessa empreitada de organizar o pensamento crítico sobre o papel do Estado e os direitos dos cidadãos e cidadãs a RECID deu uma grande contribuição no Pici, em Fortaleza proporcionando às pessoas passarem a buscar mais o engajamento nas capacitações que o próprio estado oferece dentro das políticas públicas. Ao passo que as pessoas iam participando, ou nos contados surgiam suas carências, novas parcerias ia-se buscar e os serviços foram se concretizando, como: oficinas sobre sexualidade para jovens e adultos, segurança, infraestrutura urbana, políticas de idosos, segurança alimentar. Nestas oficinas e na busca de direitos, foram percebendo a importância da participação e aí entraram nos Conselhos Gestores de saúde e educação, de políticas para juventude, cultura. Ao entrarem nas discussões encontraram outros campos de atuação que são as Conferências de Saúde, Educação, Saúde Ambiental, Segurança, Comunicação. Os idosos descobriram também que nas políticas de saúde, podiam voltar a mastigar com dentes e sorrirem aí foram buscar dentaduras na Universidade Federal do Ceará. Meu Deus! Precisa ver quanta alegria! Algumas nem saiam mais de casa, chegavam a me dizer: “Tenho vergonha de sair sem tente, estou tão feia assim”! Agora cantam, contam historias, dançam, paqueram e as relações em família mudaram radicalmente com autoestima elevada.
As entidades entram nas políticas públicas através de editais e outra parcerias nas áreas específicas às quais atuam, com princípios e missões humanamente solidários e compromissados com a transformação da cruel realidade.
A juventude do Pici recebeu formação como arte educador, voltaram a estudar e entrarem nas Faculdades por meio do Prouni e de vestibular nas Universidades Públicas. Muitos destes estão empregados na própria Prefeitura e participando na comunidade. Trabalhar com a juventude foi uma forma que encontramos, para que os trabalhos não sofram descontinuidade, principalmente qualificando-os como técnicos da área acadêmica, sendo eles da própria comunidade e que darão seqüência planejando as ações de acordo com suas próprias necessidades.
Assim, com a RECID pude dar minha colaboração como Educador Contratado e em outras horas como voluntário por acreditar ser esse o caminho da construção de uma sociedade justa e solidária capaz de promover a redenção do Ser humano e do universo.
Fortaleza, 29/08/09

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